domingo, 19 de dezembro de 2010

Antonino da Silva Guimarães - Pesquisa no Cartório de Alcântara




Antonino da Silva Guimarães em 1911
                                                              
           Este texto traz um resumo das pesquisas realizadas no Cartório do Primeiro Ofício da Cidade de Alcântara. Os resultados são parciais, e carecem de outras fontes documentais para serem aprofundados. Aguardamos o acesso aos documentos em poder do Museu Histórico de Alcântara para elucidar mais questões.

A pesquisa no cartório do 1º Ofício de Alcântara foi realizada nos meses de outubro e novembro de 2010. Buscava-se aclarar uma série de questões relacionadas ao Museu Casa Histórica de Alcântara.
Uma das fontes documentais encontradas no Cartório foi o Livro de Registro de Imóveis, objeto de grandes dimensões (cerca de 60cmx40cm),  bastante deteriorado pelo manuseio, por cupins, traças e fungos. Foi aberto em 5 de maio de 1866. Dos registros iniciais até cerca de 1879 pouca coisa restou, estando quase completamente corroído e ilegível. Neste livro registravam-se as transferências possessórias de bens imóveis, casas e terras, constando nomes de adquirentes e transmitentes, natureza e características dos bens e valores envolvidos. Outro livro bastante útil foi o Livro de Registro de Hipotecas, cujas primeiras anotações datam de 1868. Seu estado de conservação é relativamente bom, e nele estão lançadas transações de empréstimo, contendo dados como os nomes, ocupação e domicílio de credores e devedores, bem como os bens dados em garantia, suas características, os valores envolvidos, taxas de juros e prazos de pagamento; um último campo, de grande dimensão, é reservado para “Averbações”, onde se registravam as baixas ou  “relaxamento” das hipotecas.
Essas fontes apresentam algumas limitações. Entre o que se registrou e o que realmente ocorreu existe um lapso importante: os valores envolvidos podem ter sido alterados, em busca de evasão fiscal. Transações registradas como “Compra e Venda” podem ter sido de outra natureza, como no caso de execução de hipotecas, quando o credor obtem o bem em pagamento de dívida, não por compra. Por fim, parte das transações podem nunca ter sido registradas. Não se pode pensar que os livros indicam fielmente a vida econômica de um determinado indivíduo. Por outro lado, os registros cartorários acabam oferecendo, inadvertidamente, informações extras: permitem entrever a conformação material das casas, suas divisões internas, matérias-primas e arredores; demonstram os tipos de atividades  econômicas do período. Em termos quantitativos podem indicar períodos de maior ou menor incidência de transações. Pode-se ver, ainda, a mudança de nomes nos logradouros públicos, indicando o abandono de uma ordem monárquica-religiosa (Praça da Matriz, Rua das Mercês, etc), em favor de figuras ligadas à República (Praça Conselheiro Gomes de Castro, rua Costa Rodrigues, etc) .
Um dos focos da pesquisa era a figura de Antonino da Silva Guimarães, patriarca da família que foi proprietária do sobrado onde fica o Museu entre 1889 e 1986. Buscava-se averiguar a veracidade das informações que correm de boca em boca na cidade sobre este personagem: que era um usurário implacável, o homem mais rico da cidade, que teria se compadecido da ruína de Alcântara e comprado, com objetivo de preservar, as construções imponentes dos barões e latifundiários de outrora... A análise dos livros do Cartório fez avançar a compreensão sobre a vida econômica de Antonino e da própria cidade de Alcântara. Sobre o indivíduo, descobriu-se que comprou o sobrado das mãos da Baronesa de São Bento em 28/09/1889, não individualmente, mas por meio da empresa “Guimarães e Irmão”. O registro, efetuado no livro em 29/11/1889, descreve o imóvel da seguinte maneira:

Uma morada de casa cita à praça da Matris desta cidade com mirante fasendo (sic) canto a praça a rua das Mercês fronteira a casa do finado Ten. Cel. Gastão Lourenço da Costa Ferreira, hoje do capitão Gentil Augusto Ribeiro, mística com a casa de D. José Francisco de Viveiros” (Livro de Registro de Imóveis nº 4, p. 29 registro nº 49)

 A quantia despendida foi alta: 800 mil réis, dez vezes o valor de uma casa de taipa e varas, típica moradia das pessoas pobres de então. Antonino e seus familiares certamente consideraram a compra como um investimento, uma vez que o sobrado se adequava perfeitamente às atividades comerciais e aos ofícios em que eram especializados, além de oferecer moradia para muitos nos andares superiores.
Considere-se, ainda, a carga simbólica da data da transação. Ela foi realizada entre dois momentos limítrofes da história do Brasil: a abolição do regime de trabalho escravo e o fim do regime monárquico do Brasil. Toda a ordem existente antes destes eventos desmoronou: o baronato amparado economicamente nos latifúndios escravistas perdeu sustentação. Antonino, homem de cor e trabalhador manual - era alfaiate-  representava a nova ordem, solidificada na tomada do casarão e na reorientação de seu uso e significação.
O sobrado foi subdividido por meio de “doação intervivos”, registrada no Livro de Registro de imóveis nº 4, folha 48 sob o número de ordem 379:

“Meia morada de casa de sobrado sita a praça da Matris por um lado com o sobrado do Dr. José Francisco de Viveiros, e pelo outro a meia morada de casa com o correr, canto da rua das Mercês, pertencentes aos donatários Guimarães et irmão, tudo conforme a escriptura de doação”.

A beneficiária foi Procória da Silva Guimarães, que como se vê neste registro ficou com a metade norte do sobrado.
No livro em questão, que contém registros ininterruptos até o ano de 1941, encontram-se 49 transações relativas a Antonino da Silva Guimarães, a maioria delas de compras de imóveis realizadas por ele. Há, no entanto, uma lacuna sugestiva: entre a compra do imóvel da praça da Matriz, em 1889, e a próxima aquisição, passaram-se 19 anos. Um intervalo que sugere anos de trabalho diligente e metódico, contrariando a noção de que a riqueza deste personagem se construiu a partir da rapinagem do espólio dos decadentes. Após esse período de acumulação Antonino iniciou a fase de aquisições que se prolongou até o fim dos registros do livro. Analisando-os percebe-se que seus investimentos nada tinham de beneficentes: era a lógica comercial quem ditava seus movimentos. Suas aquisições urbanas se concentraram na calçada e praia do Jacaré, zona portuária da cidade; outra área privilegiada nos negócios de Antonino foi a que circunda o casarão da praça da Matriz: terrenos baldios onde erigiu-se depósitos para suas abundantes mercadorias. Os demais casarões por ele adquiridos, ao que parece, destinavam-se à acomodação de sua crescente família.
Os investimentos urbanos, no entanto, foram suplantados em número e em valor pelos que o comerciante realizou na área rural (ainda que se deva considerar que, na época, os conceitos de rural e urbano eram diferentes dos de hoje; o que determinava se uma propriedade era rural ou urbana não era sua localização, mas seu uso): inúmeras terras, salinas e engenhos foram por ele adquiridos. A importância do negócio salineiro, pelos registros, parece ter sido central na economia da família Guimarães. A intensa movimentação de salinas nos livros de registro sugere que esta atividade era a mais importante na região, no final do século XIX e início do XX. Entre 1890 e 1892 a “Companhia Salineira Alcantarense”, sediada em São Luiz e agindo em Alcântara por meio do representante Raimundo Nonato Oliveira, adquiriu centenas de salinas de particulares e ainda arrendou, por 30 anos, “todos os apicuns” situados no Município de Alcântara, pela importância de 24 contos de réis (Livro de Registro de imóveis nº 4 p. 51 nº de ordem 400). A Câmara ou Intendência  Municipal, responsável pela condução das negociações, contava com Antonino da Silva Guimarães como um de seus membros. As sessões onde se deliberou sobre este tema ocorreram nos dias 19/02/1890 e 04/08/1890. Em 1905 a Companhia Salineira Alcantarense foi liquidada,  e seus despojos foram adquiridos pela firma “Sá, Ribeiro e Companhia” de Alcântara. A companhia ludovicense passou ao poder da alcantarense,  por 95 contos de réis, o seguinte:

“cento e vinte e duas salinas, as mesmas das quaes eram sujeitas ao aforamento dos apicuns comprados a terceiros pela cessionária, e os que foram edificados nos devolutos [os da Câmara], conforme o respectivo contracto com o poder municipal”. (Livro de Registro de imóveis nº 4, p. 72 nº de ordem 527)

Além dos apicuns e salinas, foram vendidas embarcações – o “cuttes Amasonas e seis pequenas canoas” – e ainda terras, casas e chãos (terrenos) na praia dos Barcos e na praia do Jacaré. Esta transação demonstra a estrutura montada pela empresa, que investiu na produção e no escoamento da mercadoria – o que fica claro quando se percebe que entre seus bens estavam posses nos dois portos da cidade e embarcações -  garantindo autosuficiência no desempenho da atividade.
Antonino seguiu esses passos quando comprou suas primeiras 31 salinas em 13/02/1920 (Livro de Registro de imóveis nº 4 p. 108 nº de ordem 658) por seis contos e trezentos mil réis, de Major Feliciano Trino Parado. Fez parte do negócio “um terreno com benfeitorias na praia do Jacaré desta cidade”. Nesse mesmo ano o negociante emprestou uma grande soma (12 contos de réis) ao capitão e carpinteiro Manoel da Vera Cruz Silva Ribeiro, tomando como garantias:

“Uma casa de azulejos pedra e cal na rua de Baixo,  uma salina com depósito no lugar Lagoa, posse de terra Ipixuna, três terrenos na calçada do Jacaré, dois terrenos à rua do Norte, um cutter denominado “Filha do Norte”, com 14m de comprimento, 3,45m de bocca, e 1,30m de Pontal, com 15 toneladas de capacidade, um cutter denominado “Ivone Rosa Providência” com 12,10m de comprimento, 3,50m de bocca e 1,20m de pontal, com 11 toneladas de capacidade,  um cutter denominado “Resedá” com 5,80m de comprimento e 7 toneladas de capacidade, uma Canoa denominada “Lanchão” com 7,92 m e 1,3 tonelada de capacidade, uma canoa denominada “1º de maio” com 6,8m de comprimento e 2 toneladas  de capacidade, um burro de carga de cor castanha e mais 54.283kg de sal em depósito no Bacanga” . (Livro de Hipotecas, p. 32 nº de ordem 82, 21/02/1920)

A casa e a salina dadas em garantia, descritas acima, passaram à propriedade de Antonino, ( Livro de Registro de Imóveis nº 4, p. 132, nº de ordem 349) o que sugere que Manoel da Vera Cruz Ribeiro não conseguiu pagar sua dívida e teve seus bens penhorados, inclusive as embarcações. Assim Antonino começou seu império particular do sal, que se estendeu através das décadas seguintes por meio da compra de mais salinas e da negociação de grandes quantidades do produto. Sua filha Procória seguiu essa vertente, tornando-se dirigente desse ramo de atividade através das décadas de 50 e 60, quando o patriarca já havia falecido.
Uma riqueza tão exuberante produzida de forma meteórica no período imediatamente posterior à abolição suscita um questionamento fundamental, que não pôde ser respondido por meio da análise da documentação do cartório: as relações de trabalho. Quem eram os que colocavam em movimento as salinas, engenhos e vacarias de Antonino da Silva Guimarães? Sob qual regime de trabalho eles operavam? Nas memórias do Sr. Heidimar Guimarães Marques, neto de Antonino, que viveu no sobrado nº 1 sua primeira infância e juventude, nas décadas de 1930 e 1940, aparecem as figuras das “crias da casa”: moças “do interior” que eram trazidas “para estudar” na cidade, e “em troca da hospedagem” executavam os serviços domésticos, com direito a castigos físicos... (Memória de Velhos vol. 4. São Luís: Litograf, 1997. P. 152) Um sinal de como este sistema de trabalho era similar á escravidão aparece num trecho do depoimento de Heidimar, em que ele se lembra, nostálgico, dos sons da sua juventude:

“Me lembro que esta manhã, às cinco da manhã, as nossas crias se levantavam para fazer o café, pra limpar a casa, cantando, como naquele tempo faziam os escravos. À noite, no pátio interno, tinha brincadeiras, cantos[...]”( idem, p. 178, sublinhado nosso)

O restante do império de Antonino funcionava da mesma forma que sua casa? Essas questões só poderão ser elucidadas a partir da análise de outros documentos.

Na exposição de nosso museu estão dois retratos que, de acordo com o inventário do acervo, são de Antônio Mariano Franco de Sá e sua esposa, Anna Neto Franco de Sá, e datam de 1915. A presença desses itens se justifica pela noção de que estas pessoas viveram na casa em algum momento entre as famílias Viveiros e Guimarães. No livro “Museu Casa Histórica de Alcântara”, cuja pesquisa e texto foram efetuados por técnicos a serviço do IPHAN, encontra-se a seguinte informação:

“Após pertencer a essa família [Viveiros], o conjunto arquitetônico, composto pelos três sobrados, foi adquirido pelo comerciante Antônio Mariano Franco de Sá e sua mulher Anna Netto Franco de Sá (Anica Netto). As informações com relação ao período em que essa família foi proprietária desse imóvel são muito escassas e provavelmente se perderam ao longo do tempo.” (ALMEIDA, 2006. p. 20).

Há nessas afirmações algumas incongruências, pois Antônio Mariano Franco de Sá morreu ainda no século XIX, e se a foto que temos é realmente de 1915, obviamente não é ele o retratado. Os dados que encontramos nos dois livros analisados no Cartório de Alcântara, o de Registro de Imóveis e o de Registro de Hipotecas, permitem perceber que havia uma parceria econômica entre Antônio Mariano Franco de Sá Júnior e Antonino da Silva Guimarães, traduzida em negócios em sociedade. Em 1909 os dois tornaram-se credores de Margarida da Costa Rossi, em conjunto, emprestando a ela 7 contos de réis e tomando como garantia uma fazenda no distrito de Santo Antônio e Almas (Livro de Hipotecas, página 20, número de ordem 63, efetuado em 14/06/1909). Mais tarde, no livro de registro de imóveis, a dita fazenda torna-se propriedade de “Sá et Guimarães”, certamente em razão da execução da hipoteca vencida (Livro de Registro de Imóveis, página 82, número de ordem 568, efetuado em 28/06/1910). Antônio Mariano Franco de Sá Junior aparece com frequência como credor nos registros do Livro de Hipotecas entre 1891 e 1914. Entre 1908 e 1914, ele e Antonino ocupam quase todos os registros do livro, o que sugere serem homens de grande fortuna que atuavam como usurários, às vezes em conjunto. Essa parceria parece ter extrapolado o campo econômico: quando Antônio Mariano Franco de Sá Júnior falece, em algum momento entre 1915 e 1917, Antonino foi incumbido de cuidar de seu testamento, e parece ter desempenhado essa tarefa com cuidado especial, a julgar pela forma firme com que buscou receber as dívidas das quais o finado sócio era credor. Antônio Mariano Franco de Sá Júnior e sua esposa, D. Anna de Oliveira Netto de Sá, eram de família tradicional, herdeiros de antigos latifundiários escravistas, de pessoas que tiveram participação ativa na política local e chegaram a ocupar cargos nos centro de poder federal. Nos registros Antônio sempre é descrito como “proprietário” (ao contrário de Antonino, que no início era rotulado “negociante” ou “comerciante”, e que só mais tarde mereceu do escrevente o título de proprietário). Os Franco de Sá possuíam inúmeras propriedades urbanas, casarões senhoriais que nada ficavam a dever ao sobrado número 1 da Praça da Matriz. Parece improvável que essas pessoas tenham vivido nesta casa na forma de inquilinos; Franco de Sá Junior pode ter usado as dependências do andar térreo como casa comercial, mas essas são suposições que carecem de um embasamento mais firme. A presença das fotos pode ser explicada pela amizade entre as famílias. Talvez novos documentos possam elucidar melhor essa questão.

O que se sabe, com certeza, é que este personagem nunca foi oficialmente o proprietário do sobrado número 1, uma vez que no registro de venda o bem passa diretamente das mãos da Baronesa de São Bento para a família Guimarães.

Finalmente, uma outra noção que se pode absorver a partir da leitura dos citados livros do cartório é a que se refere às conformações físicas das moradias no período. Aparecem nos registros os seguites tipos de casa:
As de pedra e cal e madeira do país, assobradada ou não, revestida de azuleijos ou não, morada inteira, meia morada ou mais de uma morada de casa, cobertas de telha. Muitas vezes aparecem descritas como “em estado de ruínas”.
As de taipa e varas, cobertas de telha, e em apenas um registro, de pindoba, sempre térrea, podendo ser de meia morada ou morada inteira.
As mistas, de pedra e cal na fachada e paredes laterais e divisões internas de taipa e varas.
Até 1941 não se encontram referências a casas feitas com tijolos.
Aparecem ainda referências aos poços empedrados nos quintais, ítem sempre citado no registro quando existente na casa negociada. Os quintais eram ditos “fundos correspondentes” ou “competentes”, quando não delimitados por muros, ou com a indicação ”murado”. A presença de “árvores fructíferas” era sempre citada, quando existente.
Quanto às divisões internas, chama atenção a completa ausência de referência a banheiros, o que parece indicar que este não era parte componente habitual das casas da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX em Alcântara. Em geral, a descrição das divisões internas segue um padrão: um ou dois quartos de frente, o mesmo número nos fundos, corredores varanda e despensa. Em alguns poucos registros aparece referência a cozinha.


Imagem: Acervo Fotográfico do Museu Casa Histórica de Alcäntara - cedida à Institução por Heidimar Guimarães Marques. Fotografia de Antonino da Silva Guimarães, 1911. Fotógrafo: Gaudêncio Cunha, "Photographia União - Rua do Sol n. 30 - Maranhão -Brazil"

sábado, 4 de dezembro de 2010

A Instituição



Os museus históricos, segundo Ulpiano Menezes, foram criados com um intuito claro de “acatar, celebrar e fixar modelos de valores e comportamentos”, por meio da promoção de determinados personagens que encarnam esses elementos. Essa função atribuída aos museus históricos se confunde com o papel que se atribuía a História enquanto ciência: legitimadora de construções sociais, políticas e econômicas, que apresentava uma verdade pronta e acabada sobre o passado. Era um período em que os historiadores se ocupavam dos grandes vultos, dos fatos extraordinários, dos acontecimentos ligados as dinastias, aos governantes, aos grandes nomes. Só mereciam estudos os aspectos econômicos, políticos e militares. O cotidiano, a vida e os esforços das pessoas comuns, as mentalidades e o imaginário, eram aspectos desprezados, vistos como desimportantes, indignos de estudos e análises. Mulheres, escravos, trabalhadores, crianças, não eram vistos como atores históricos de fato.
Apesar de ser comum detectar permanências desse paradigma, a história mudou muito nas últimas décadas. Diversas gerações de estudiosos tomaram consciência da importância de tais estudos, e aqueles aspectos antes ostracizados são hoje centrais nos esforços dos historiadores.
Nosso trabalho no Museu Casa Histórica de Alcântara se desenvolve dentro dessas novas perspectivas historiográficas. Nossa instituição preserva elementos importantes que permitem compreender um pedaço da história do Brasil e do Maranhão. O prédio, construído no início do século XIX, fugindo do destino de seus coevos hoje arruinados, exibe em seus traços arquitetônicos as características do contexto em que apareceu: suas senzalas indicam que é fruto de uma sociedade escravocrata, sua divisão interna demonstra a composição patriarcal das famílias. O conteúdo do prédio, seu mobiliário, seus instrumentos de trabalho e utensílios domésticos, documentam os padrões do cotidiano, os hábitos corriqueiros que delineiam as formas de pensar e agir, as formas de sociabilidade, as relações de gênero, a religiosidade. Tal acervo se enriquece quando se percebe um “hibridismo temporal”, a presença e convivência de objetos produzidos em períodos diferentes, agregados pela última família que ali viveu, ao longo da primeira metade do século XX. É uma transição histórica que se revela: hábitos que permanecem, novidades tecnológicas que se incorporam aos velhos móveis, o encontro dos séculos XIX e XX.
Olhada por este prisma, nossa instituição se manifesta como um importante documento histórico, cristalizando materialmente o processo de transição entre a Monarquia e a República, momento em que a antiga aristocracia rural perde espaço e um novo segmento, ligado as atividades urbanas, se consolida.
Essa riqueza histórica impressa no Museu Casa Histórica de Alcântara seria inócua, no entanto, se representasse a finalidade última dessa instituição. Mais do que ser meramente a guardiã desse legado, a Casa procura tornar-se intermediária dele com a sociedade circundante, concorrendo para a formação de uma consciência crítica e para a discussão, compreensão e ação direta na realidade local. Projetos como o de resgate da memória local, formando um acervo audiovisual, as diversas oficinas realizadas anualmente, as palestras e ciclos de debate e as atividades educativas visam tornar o Museu Casa Histórica de Alcântara um ator social importante na comunidade.
Antônio Lopes, historiador maranhense, lançou nos anos 1950 a fórmula que definia Alcântara: “ontem uma grandeza, hoje uma ruína: amanhã o que será?” Nosso trabalho visa, acima de tudo, proporcionar uma resposta positiva a esse enigma.

Texto e pesquisa: Daniel Rincon Caires

Referências:

BURKE, Peter. A Escola dos Annales – 1929 – 1989 – A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.

LOPES, Antônio. Alcântara - Subsídios para a história da cidade. São Paulo: Siciliano, 2002.

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. Para que serve um museu histórico? In: Como Explorar um Museu Histórico. São Paulo: USP/Museu Paulista, 2000.

Foto: Casarões da Praça da Matriz de Alcântara, cerca de 1920. Acervo fotográfico do MCHA